segunda-feira, 2 de novembro de 2009

BREVE TRATADO DAS CANECAS AMARELAS

Tenho, diante de mim, quatro canecas amarelas. E elas representam, hoje, a memória de um tempo (que se foi). Em outras palavras: elas simbolizam a impermanência de tudo. E se resolvo retroceder (na memória, posto que só na memória posso retroceder) eu percebo que (apesar de toda a filosofia) nós conservamos algumas fantasias em relação ao "para sempre".As canecas, por exemplo: quando as comprei, dei-as de presente e jamais imaginei que voltariam para mim. Dei-as dentro de um contexto que parecia estável. Eu até poderia imaginar um acidente doméstico. Um hipotético acidente na pia da cozinha. E então as canecas se quebrariam. Mas tê-las de volta, as canecas amarelas, na minha casa, essa cena eu não calculei. Pois bem: as canecas voltaram. Por que voltaram?... Voltaram porque o contexto, que as recebeu, não existe mais. Existem as pessoas, mas não existem as circunstâncias que deram origem às canecas (em número de quatro, todas amarelas, grandes e iguais). Evidentemente, as canecas retornaram com o meu consentimento. Eu as aceitei de volta. Eu as aceitei, é verdade, com uma certa nostalgia. Mas, de qualquer sorte, considerei que a minha casa era o melhor musei para elas. É claro que as quatro abrigam, no fundo, os meus fantasmas. Mas (por serem meus, os fantasmas) eles não tenho medo deles. Pelo menos, não tenho medo desses fantasmas, os fantasmas do fundo das canecas. Por outro lado, as canecasme remetem a outros objetos e a outros afetos. Por exemplo: até quando serão importantes, para mim, os meus vasos azuis?... E o meu cuco?... E se o forem, até o final da minha vida, o que farão aqueles que me sucederem?... Haverá quem receba o meu cuco da mesma forma como recebi as canecas?... Mas, enfim, as canecas voltaram. E somente poderiam voltar para mim. Ninguém mais entenderia a simbologia contida nelas (não em cada uma, separadamente, mas no conjunto). Ninguém mais poderia vê-las como eu as vejo. Sobretudo porque elas, as canecas, começaram comigo. E agora, que tenho as quatro diante de mim e que me aproximo do ponto final, dou-me conta de que (embora não contasse com a volta das canecas) essa volta foi providencial porque me devolve conceitos que não podem ser esquecidos. Entre eles, o fato de que é preciso tomar o chá (que está na xícara ou na caneca) como se fosse o último. Ou seja: temos que ser intensos. Temos que estar, inteiros. Temos que beber o chá, completamente. Porque, a qualquer momento, as canecas podem voltar...

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