sábado, 7 de novembro de 2009

O QUE RONDA O RONDA?

Tem o ronda que ronda a rua em que moro. O que ronda o ronda? Ronda a noite. E, sobretudo, ronda as esquinas. Nelas, existe a eterna possibilidade do desconhecido. E o desconhecido nos assusta e jamais virá em linha reta. Na confluência das ruas, na encruzilhada, no "ponto cego": aí, sim. Aí está o que não vemos. Ou, melhor: o que não prevemos. E então o ronda ronda o que tememos. Que roupa veste o ronda que ronda, insone, o sono dos que pagam a ronda?... Possivelmente, veste (no imaginário) a fantasia de um pijama listrado de azul, no qual deve faltar um botão que a mulher do ronda não pregou (e nunca mais pregará) posto que nenhuma mulher (que se preze) pregará botões (ou prego sem estopa). Este é o século das mulheres!!! Nem mesmo a mulher do ronda, que se supõe seja uma mulher singela, nem ela pregará botões, uma vez que "pregar botão" seria um retrocesso histórico que as "patrulhas de plantão" não permitiriam. O quê? Pregar botão???... Jamais!!! E, então, quem pregará botão no novo mundo? E quem pregará, precisamente, o botão do pijama do ronda?... E o ronda ronda, olhos bem abertos, o coração deserto. Ronda sem parar. Sem pensar que a mulher (a sua mulher) poderá pregar até a Palavra de Deus. Mas, botão, isso não!!! Isso, nunca mais ela pregará. Até quando rondarás, oh! ronda? Tu que rondas, sem botão no teu pijama de fantasia?... Até quando suportarás, oh! ronda, a tua ronda?... Tu que rondas o desconhecido, desprotegido?... Tu que tens o pijama aberto no centro do peito porque nele te falta (e te faltará para sempre) o botão que tua mulher não pregará. Tu que rondas, os olhos bem abertos e o coração deserto, até quando, oh! ronda, rondarás? Até quando suportarás a pior solidão, que é a solidão de um pijama sem botão?... Até quando suportarás a tua casa sem botão?... E o ronda se vai, pelas transversais, rondando mais e mais e mais.

DAS CHUVAS QUE NÃO CHOVEM MAIS

Na minha infância chovia periodicamente. Regularmente. Suficientemente. Consequentemente, todos tínhamos capa-de-chuva, sombrinha e galocha. Galocha???... Sim, galocha: usávamos galocha e era um comércio próspero, o comércio de galochas. Depois da chuva, caminhávamos nas poças de água, os pés descalços, a alma lavada. E nos deslumbrava o arco-íris, em cujo final acreditávamos que havia um pote de ouro. As crianças de hoje não conhecem o arco-íris! E para elas não compramos nem capas e nem os demais acessórios, posto que não chove mais. Não chove mais???... Os eventuais leitores talvez se perguntem, aflitos, se não vejo a tragédias das enchentes na televisão. Vejo, sim! Claro que vejo! Mas não estou me referindo às tragédias: estou afirmando que não chove mais. O que a televisão mostra são "estados de calamidade pública", muito diferentes das chuvas de antigamene. Das minhas chuvas, que eram chuvas periódicas, regulares, sem consequências dramáticas ("apesar de que os espelhos das casas eram cobertos com lençóis para que não "atraíssem os raios). Tudo bem: havia uma série de crendices e medos e segredos. Mas as chuvas realimentavam a terra e garantiam colheitas fartas. Nas tarde chuvosas, longas tardes chuvosas, as mães faziam bolinho frito e os filhos ficavam nutridos de trigo e sonhos porque era possível sonhar. (...) E o tempo passou (...) As mães e os bolinhos ficaram no passado. Os sonhos, da mesma forma, ficaram lá (pois que não há lugar para eles, aqui). As crianças não caminham mais com os pés descalços, nas poças de água. E não usam galochas. Não conhecem galochas. Na verdade, as crianças perderam a inocência da galocha, a partir do momento em que perderam os pais. Ou, por outra: perderam o direito aos pais, àqueles pais que foram os senhores de um castelo (belo, belo) que nos preservava de "todos os males, amém". Pois bem: se perderam esse suporte, os "novos órfãos do novo tempo" tiveram que inventar "bengalas" e aí vieram as "grifes", os tênis importados, os corpos tatuados, os bonés virados. Aliás, somente adolescentes extremamente amados (e por essa razão seguros) seriam capazes de usar galochas!!!

terça-feira, 3 de novembro de 2009

PESSOAS PRECISAM DE PESSOAS

As pessoas precisam de pessoas. Esta deveria ser a premissa básica da vida. E, as demais, uma consequência da primeira: você é uma pessoa. Logo, eu preciso de você. Mas enquanto vou escrevendo, vou pensando que é preciso viver muito para descobrir o que agora me parece tão simples, tão óbvio, tão lógico: as pessoas precisam de pessoas. O que não significa, também, que não precisamos de um certo distanciamento. Às vezes, é necessário ficarmos sozinhos, voltados para o nosso templo. É nesse silêncio e nesse recolhimento que conseguimos ouvir a voz interior. E ouvindo a voz interior, atentamente e frequentemente, com muito mais facilidade acertamos o caminho. O que nos faz cometer uma série de erros é justamente porque não paramos para pensar. Mas, voltando à ideia principal: as pessoas precisam de pessoas. As pessoas insistem nas coisas: no carro, na roupa, nos aparelhos de última geração (na eterna ilusão de que" tudo isso" pode preencher os vazios da alma). Senão, que "tudo isso" pode comprar afetos. Mas acontece que as pessoas precisam de pessoas. De pessoas que estejam, com as pessoas, pelas pessoas. E é muito, muito bom quando (enfim!) conseguimos "precisar de pessoas". No momento em que atingimos esse patamar, estamos na plenitude da vida. Aprendemos, por exemplo, que "precisar de pessoas" não é sinal de fraqueza, mas índice indiscutível de autoconhecimento. À medida em que nos conhecemos, não temos medo de admitir as nossas necessidades. Aprendemos, também, na plenitude da vida, que o melhor (das pessoas) é o fato de que cada pessoa é uma pessoa, o que vale dizer: as pessoas são únicas e diferentes e surpreendentes. E na mesma proporção em que vamos percebendo que pessoas precisam de pessoas, vamos percebendo que "não precisamos" de tantas coisas. Consequentemente, ficamos mais ricos, mais sábios, mais tranquilos e mais livres. E melhores. Muito melhores!

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

BREVE TRATADO DAS CANECAS AMARELAS

Tenho, diante de mim, quatro canecas amarelas. E elas representam, hoje, a memória de um tempo (que se foi). Em outras palavras: elas simbolizam a impermanência de tudo. E se resolvo retroceder (na memória, posto que só na memória posso retroceder) eu percebo que (apesar de toda a filosofia) nós conservamos algumas fantasias em relação ao "para sempre".As canecas, por exemplo: quando as comprei, dei-as de presente e jamais imaginei que voltariam para mim. Dei-as dentro de um contexto que parecia estável. Eu até poderia imaginar um acidente doméstico. Um hipotético acidente na pia da cozinha. E então as canecas se quebrariam. Mas tê-las de volta, as canecas amarelas, na minha casa, essa cena eu não calculei. Pois bem: as canecas voltaram. Por que voltaram?... Voltaram porque o contexto, que as recebeu, não existe mais. Existem as pessoas, mas não existem as circunstâncias que deram origem às canecas (em número de quatro, todas amarelas, grandes e iguais). Evidentemente, as canecas retornaram com o meu consentimento. Eu as aceitei de volta. Eu as aceitei, é verdade, com uma certa nostalgia. Mas, de qualquer sorte, considerei que a minha casa era o melhor musei para elas. É claro que as quatro abrigam, no fundo, os meus fantasmas. Mas (por serem meus, os fantasmas) eles não tenho medo deles. Pelo menos, não tenho medo desses fantasmas, os fantasmas do fundo das canecas. Por outro lado, as canecasme remetem a outros objetos e a outros afetos. Por exemplo: até quando serão importantes, para mim, os meus vasos azuis?... E o meu cuco?... E se o forem, até o final da minha vida, o que farão aqueles que me sucederem?... Haverá quem receba o meu cuco da mesma forma como recebi as canecas?... Mas, enfim, as canecas voltaram. E somente poderiam voltar para mim. Ninguém mais entenderia a simbologia contida nelas (não em cada uma, separadamente, mas no conjunto). Ninguém mais poderia vê-las como eu as vejo. Sobretudo porque elas, as canecas, começaram comigo. E agora, que tenho as quatro diante de mim e que me aproximo do ponto final, dou-me conta de que (embora não contasse com a volta das canecas) essa volta foi providencial porque me devolve conceitos que não podem ser esquecidos. Entre eles, o fato de que é preciso tomar o chá (que está na xícara ou na caneca) como se fosse o último. Ou seja: temos que ser intensos. Temos que estar, inteiros. Temos que beber o chá, completamente. Porque, a qualquer momento, as canecas podem voltar...

domingo, 1 de novembro de 2009

FINADOS, 2009

Carlos Drummond de Andrade dizia (e disse em poesia) que morremos duas vezes:primeiro, no dia do fato. Depois, no nome. O que vale dizer: num segundo momento, morremos na lembrança. Na memória daqueles com os quais convivemos e pelos quais (tantas vezes!) sofremos. E aqui não se trata (e não se trata mesmo) de uma "cobrança antecipada de dívidas inexistentes". Aliás, ninguém nos deve a contrapartida do que demos. Demos, do verbo dar. Simplesmente, demos. Todavia, considero importante que tenhamos tal consciência: a de que, cada vez mais, mais rapidamente morremos. A expectativa de vida aumentou. A qualidade da vida, em muitos aspectos, também melhorou. Mas a morte (da qual, há muito, já eliminamos o luto) a morte (hoje) é "um fato consumado", literalmente. Não temos mais tempo para ela. Por outro lado, igualmente não temos tempo para a vida. E então sobra a impressão de que estamos (todos) vivendo "situações transitórias".Sendo transitórias, obviamente não são profundas. Consequentemente, não nos envolvemos. E sempre acabo culpando a família. Depois que a família deixou de ser "o porto seguro" para se transformar no "encontro casual de duas pessoas que eventualmente geram uma terceira", morte e vida conquistaram status acidental: estamos acidentalmente vivos e acidentalmente morreremos. E não há nenhum exagero: se não existe um comprometimento familiar, os nascimentos (resultantes desses encontros quase fortuitos) são meros "acidentes de percurso". A partir dessa ótica, vale pressupor que ninguém se apaixona. Ora: sem paixão, nem celebramos a vida, nem choramos a morte. Resta, efetivamente, o sentimento de transitoriedade: tudo passa, passarei, passaremos. No entanto, o fato de chegar a tais conclusões não significa que estou conformada. Ou de acordo. Pelo contrário: acho que precisamos de afeto. Acho que precisamos do toque essencial. Acho que precisamos nos envolver, profundamente. Acho que precisamos ficar atentos ao outro. E ouvi-lo. E percebê-lo. E aceitá-lo como Dom Helder Câmara aceitava as criaturas: com o corpo, com a alma e com todas as consequências. Enfim: "acho" uma porção de coisas que "acho" que não vou achar, nunca mais.